A página de “Agradecimentos” mais original e poética que eu já li em um livro

Todo autor, ao escrever alguma coisa de maior relevância, sempre agradece às pessoas que o ajudaram em sua empreitada, tanto em relação à obtenção do conhecimento que o permitiu publicar o assunto, ou quanto a diversas outras situações ou pessoas que contribuíram para sua formação e êxito.

A página de “Agradecimentos” de um livro é assim uma chance do autor reconhecer a importância das outras pessoas, e essa chance mereceria mais do que um simples obrigado por isso ou aquilo. O problema é que tais páginas são geralmente muito chatas, cartesianas, sem originalidade alguma. O formato é quase sempre: “Agradeço à Fulano por tem me ensinado isso; à Beltrano por ter feito aquilo; etc.” Verifique a página de agradecimentos de meia dúzia de livros que verá exatamente a “padronização” existente.

Entretanto, por diversos motivos, precisei ler um trecho da documentação do SCSH (cujo logo é a imagem deste artigo), que é um Shell Unix feito em Scheme 48 (uma das muitas variantes da Scheme que, por si só, é um dos dialetos mais comuns da Lisp). E a página de agradecimentos da documentação do SCSH, escrita por Olin Shivers em 1994-09-04 é a mais original e poética que eu já li em qualquer documentação, livro, dissertação, tese ou o que quer que seja.

Ela é tão diferente, contundente e fenomenal que tomei a liberdade de copiá-la abaixo (para quem não lê inglês, traduzi da melhor forma possível e coloquei a tradução após o original em inglês, mas já advirto: não é a mesma “experiência” de entender o original).

Leia os “Agradecimentos” de Olin Shivers para ver como uma página assim deveria ser escrita (você pode não concordar com ele, mas não poderá negar que seu estilo foi fenomenal)!

Acknowledgements

Who should I thank? My so-called “colleagues,” who laugh at me behind my back, all the while becoming famous on my work? My worthless graduate students, whose computer skills appear to be limited to downloading bitmaps off of netnews? My parents, who are still waiting for me to quit “fooling around with computers,” go to med school, and become a radiologist? My department chairman, a manager who gives one new insight into and sympathy for disgruntled postal workers?

My God, no one could blame me — no one! — if I went off the edge and just lost it completely one day. I couldn’t get through the day as it is without the Prozac and Jack Daniels I keep on the shelf, behind my Tops-20 JSYS manuals. I start getting the shakes real bad around 10am, right before my advisor meetings. A 10 oz. Jack ‘n Zac helps me get through the meetings without one of my students winding up with his severed head in a bowling-ball bag. They look at me funny; they think I twitch a lot. I’m not twitching. I’m controlling my impulse to snag my 9mm Sig-Sauer out from my day-pack and make a few strong points about the quality of undergraduate education in Amerika.

If I thought anyone cared, if I thought anyone would even be reading this, I’d probably make an effort to keep up appearances until the last possible moment. But no one does, and no one will. So I can pretty much say exactly what I think.

Oh, yes, the acknowledgements. I think not. I did it. I did it all, by myself.

Olin Shivers, Cambridge, September 4, 1994

Agora segue a tradução que eu fiz para o português:

Agradecimentos

Quem devo agradecer? Meus chamados “colegas”, que riem de mim pelas minhas costas, enquanto se tornam famosos com meu trabalho? Meus inúteis estudantes de pós-graduação, cujas habilidades de computação parecem estar limitadas ao download de bitmaps da Netnews? Meus pais, que ainda estão esperando eu parar de “brincar por aí com computadores”, ir à escola de medicina e se tornar um radiologista? O presidente do meu departamento, um gerente que nos faz até ter simpatia e uma nova visão por trabalhadores postais descontentes?

Meu Deus, ninguém poderia me culpar – ninguém! – se eu passasse dos limites e perdesse completamente a cabeça um dia. Eu não consigo passar pelo dia como ele é sem o Prozac e o Jack Daniels que eu mantenho na prateleira, atrás dos meus manuais de Tops-20 JSYS. Os tremores começam a ficar realmente ruins às 10h, logo antes das minhas reuniões como conselheiro estudantil. Uma dose de 300 ml do meu “Jack e Zac” me ajuda a superar as reuniões sem que um dos meus alunos acabe com sua cabeça cortada em uma bolsa de boliche. Eles me olham engraçado; eles pensam que eu me contorço muito. Eu não estou me contorcendo. Estou controlando meu impulso de tirar minha pistola Sig-Sauer 9mm da minha mochila e expressar alguns pontos fortes sobre a qualidade da educação de graduação na América.

Se eu pensasse que alguém se importasse, se eu pensasse que alguém estaria lendo isso, eu provavelmente faria um esforço para manter as aparências até o último momento possível. Mas ninguém o faz, e ninguém o fará. Então eu posso falar exatamente o que eu penso.

Ah, sim, os agradecimentos. Eu acho que não. Eu fiz isso. Eu fiz tudo, sozinho.

Olin Shivers, Cambridge, 4 de setembro de 1994

Obrigado Olin Shivers, por um texto absolutamente fenomenal em um local que, até então, era o mais chato de qualquer publicação!

Se eu tivesse tido o prazer de ler essas linhas antes de minha dissertação de mestrado, minha página de “Agradecimentos” não seria tão chata…

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